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O carro autônomo e nossas aspirações de liberdade

Por Luiz Carlos Mello 23/11/2018 - 14:23

ACESSIBILIDADE

Carros do Google estão em fase de testes em todo o mundo - Foto: Divulgação
Carros do Google estão em fase de testes em todo o mundo - Foto: Divulgação

Em seu “A vida cultural do automóvel”, Civilização Brasileira, 2004, Guillermo Giucci afirma que “máquina ícone do século XX, o automóvel revolucionou a sociedade. Alterou as noções de tempo e espaço, afetou negócios e governos e sacudiu as relações familiares, a sexualidade, a moral e redefiniu a vida urbana e rural. Rapidamente passou a ser visto como uma necessidade do mundo moderno, materializando a própria ideia de liberdade...Acelerando o ritmo da vida cotidiana, transformou-se numa segunda natureza”.

Nessa síntese tão aguda sobre o que o automóvel representa para o gênero humano, desde que foi inventado e tornado acessível economicamente (muitíssimo a fazer ainda, quando se registra uma relação mundial de cerca de um veículo para 8 terráqueos!), Giucci talvez tocou na corda mais sensível do comportamento e ideal humanos: a liberdade. Não provavelmente a liberdade programada, mercê do amálgama de bilhões de dados fermentados em algoritmos e regurgitados pela binária e retilínea inteligência dos computadores. Não essa provavelmente, mas aquela que resulta da “imediatidade” (com licença do termo, pelo nosso vate, Jessier Quirino) entre pensamento e ação, modelada e modulada pelo gosto do improviso e da intempestividade próprias de quem a desfruta na condução de um automóvel.

Na ânsia de se aproveitarem do ineditismo que lhes conferirá, em conquista de mercado, o lançamento pioneiro do autônomo, líderes da tecnologia como Google (Waymo), provedores de mobilidade como Uber, e montadoras tradicionais lutam essa guerra sem quartel. Os 4 ou 5 acidentes fatais envolvendo carros do Google, Uber e Tesla, nos Estados Unidos, como quase sempre acontece, foram debitados ao descuido do apelidado “condutor” e não da parafernália robótica que impulsiona o veículo e... o faz “pensar” (?!). E fazem-no, ainda livres de qualquer legislação específica que venha a definir níveis de responsabilidade no estrito e irrecorrível campo da segurança veicular. Governos e iluminados produtores não se permitem informar aos crédulos cidadãos o nível de certeza quanto a ser essa segurança um fator imune a qualquer risco.

Esse quadro ainda de fundadas desconfianças quanto à plena exequibilidade de uso do autônomo, tem estendido seus desafios inclusive à área de Neurociência, na medida em que igualmente se procura, em terreno tão esquisito quanto espetacularmente desafiador, o da inteligência artificial, como dotar o veículo de condições que o remetam à sensação que Guillermo Giucci descreveu.  Como, com absoluta segurança, fazer seu deslocamento algo que não exaspere o “cliente” com a lentidão atual, bem como, por exemplo, ser menos propenso a freadas e inclinações ao detectar qualquer obstáculo que não se enquadre nos perfeitos limites do cérebro dos computadores???!!!  A isso se dedica uma desses “think tankers” da tecnologia, a empresa Perceptive Automata, de Boston, como relata a Automotive News da edição de 9/10/18. O objetivo que desafia essa empresa é o de ensinar o carro “a imitar perfeitamente o ser humano”, transferindo à máquina o senso de segurança (ou de medo) típico do ser humano, ou seja, fazê-lo também intuitivo.

Nada acontecendo, nesse meio tempo, que tranquilize o “condutor” do autônomo (desculpem-me o paradoxo), sugere-se que nos incluamos dentro do preceito preconizado pelo conhecido pesquisador americano em “learnig machine”, citado em entrevista também pela Automotive News de 16/8/18, Andrew Ng , ou seja: “diga-se aos transeuntes para serem respeitosos com a lei e amigáveis com os veículos autônomos”.

O espantoso é que os recursos mobilizados pela indústria automobilística no sentido do carro autônomo são de vulto antes nunca imaginado, como se o seu futuro somente dele dependesse.

Giucci certamente não convalidará essa convicção e nós, amantes da liberdade, também não.


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