Opinião

Cotas: a ressaca do racismo universitário

“A exemplar recusa do STF das pretensões do novo Ku Klux Klan resolve uma questão específica
Por Congresso em Foco 14/05/2012 - 10:23

ACESSIBILIDADE


[O sistema de cotas] é uma discriminação às avessas, em que o branco não tem direito a uma vaga mesmo se sua pontuação for maior. [Grifo meu]
Ives Gandra, Professor Emérito da Escola de Comando de Estado Maior do Exército

 



O governo federal tem implementado programas e leis com o único objetivo de discriminar contra os brancos. [Grifo meu]
Plataforma do Ku Klux Klan, ponto 5º





Antes de começar: você não acha emocionante a semelhança dessas duas afirmações?



Nos dias 25 e 26 de abril, o STF aprovou, por 10 votos a 0, a recusa da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADFP) 186, movida em 2009 pelo setor mais racista da direita brasileira. Ele pretendia obrigar a Universidade de Brasília (UnB) a anular seu sistema de cotas raciais, argumentando que as ações afirmativas iam contra a Constituição Federal.



Na prática (embora não formalmente), o voto que protege a UnB do delírio racista foi emitido por unanimidade, porque o ministro Toffoli, que se absteve, fundamentou sua ausência no fato de ser conhecido como favorável às cotas. Trata-se, então, de uma vitória total sobre o racismo e, pela natureza do tema tratado, é a mais relevante votação da Corte que eu posso lembrar.



O único que faltou foi esclarecer que as cotas raciais são legítimas não apenas no caso de afrodescendentes, mas também de indígenas e quaisquer outros grupos raciais. Mas, acredito que isso seja deduzível.



Desde que as cotas se tornaram um perigo para o monopólio da classe média-alta branca sobre as universidades, o “porre” dos acadêmicos por causa das ações afirmativas passou pelas mais variadas fases, incluindo, com essa ação judicial, uma fase culminante em delirium tremens.



Nesse delirium, os doentes não tiveram as famosas alucinações de horríveis bichos cor de rosa, mas de zulus armados com lanças que entravam nos campi universitários e perguntavam aos especialistas em ciência hermética: “Quando vocês vão ensinar a gente a calcular uma integral?”. As fases do “porre” foram muitas, mas há alguns exemplos destacados.



Para começar, os racistas “com formação superior” atacaram focalmente as ações afirmativas nas universidades, mas se ocuparam pouco das cotas reservadas pelas empresas e empregadores em geral. A razão é simples: nos países coloniais (e especialmente escravocratas), a universidade é um espaço sagrado para as altas elites e também para as elites intermédias que se tornam suas cupinchas. Um senhor bem de vida não se angustia pela existência de cotas num emprego de vendedor, porque seus filhos jamais precisarão ser vendedores, mas se importa de que possam entrar nas melhores universidades brasileiras, que são as públicas. Delas sairão formados, porém poucas vezes como cientistas ou humanistas, mas como financistas, “empreendedores”, manipuladores políticos e, em geral, pessoas influentes para administrar o melhor patrimônio de seus país, o Brasil.



As elites tampouco se preocupam pela existência de cotas para pessoas com necessidades especiais. Pessoas vulneradas por deficiências são minoria e absorvem uma fatia pequena de vagas. Além disso, alguns membros da burguesia têm filhos com necessidades especiais, embora, quase nenhum deles tenha filhos negros e nenhum tenha filhos pobres.



Outra fase desse “porre” foi o terrorismo. Falou-se que a escolha de estudantes a partir de ações afirmativas criaria ressentimento em estudantes não cotistas que, apesar de seu melhor nível, poderiam ficar de fora. Jornalistas mercenários, advogados alcoviteiros, juízes racistas e politiqueiros corruptos assustaram com um argumento cínico: poderia estourar uma guerra racial nas universidades. Isso, porém, não aconteceu nos nove anos de aplicação das cotas. Mas, se ocorresse, a solução não consistiria em fugir do ataque racista. A solução é exigir que se aplique a lei contra o racismo, que ainda é virgem.



O delírio seguiu com um argumento “técnico”: os centros de “excelência” cairiam de nível. Um fato colateral (que, se fosse diferente, não alteraria a legitimidade de nossa tese) é que esse nível pode estar sendo superestimado pelos cientistas. O Brasil está no 13º lugar da produção científica indexada mundial, mas poucas vezes se analisa a relevância social dessa produção. Atenta-se muito ao número de trabalhos publicados e de citações dos mesmos, mas pouco à repercussão da pesquisa na qualidade de vida dos cidadãos. Muitos pesquisadores dizem que “patentes” são coisas que devem ser deixadas à iniciativa privada.


Mas, mesmo se o Brasil fosse o primeiro, isso não justificaria que os racistas se recusem a ensinar, pois, mesmo que a comunidade científica não lembre, a universidade é parte do sistema educativo. As cotas incomodam, porque os pesquisadores deverão desviar algumas horas por semana de seus papers e grants para ensinar a jovens favelados e quilombolas o que significa “paralaxe”, “número quântico” ou “hematose”.


Isso tirará sua concentração dos trabalhos que assinam junto com seus orientandos, de preencher formulários para novos subsídios e bolsas, e de fazer contato com colegas do exterior para (nesta época de teleconferência e de realidade virtual) convidá-los a passar uma temporada a “trabalho” no Brasil. Também deixará menos tempo para articular com políticos e empresários os novos “negócios” (perdão, quis dizer “projetos”) científicos.



Há muitas outras razões para a raiva contra as ações afirmativas. Na região Sul e no Estado de São Paulo, o racismo é tão sólido como no Bible Belt dos EUA, e os doutores e post-doutores de olhos azuis (como diria Lula) se ofendem de compartilhar seu espaço com filhos de empregadas domésticas e pedreiros. Também está o vestibular: este não seleciona nem por conhecimento nem por inteligência, mas pela capacidade de responder a estímulos, cujo circuito é ensinado apenas em cursinhos caros ou escolas de luxo. Eles não usam, é verdade, a campainha de Pavlov, mas modernos computadores.



A exemplar recusa do STF das pretensões do novo KKK resolve uma questão específica. No entanto, ouvi dizer de alguns especialistas em direito que essa decisão pode ter influência fundamental como jurisprudência, inclusive para incentivar o legislativo a reagir, 124 anos depois, à segregação social dos grupos étnicos oprimidos. Os cidadãos democráticos e humanistas têm desta vez um motivo para cumprimentar a Corte.


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